Carta do editor

A insurgência contra normatividades de classe, gênero e raça pontua os três vencedores do Concurso de Ensaísmo serrote em sua sexta edição. O que os torna notáveis é menos a afinação com temas decisivos, que de fato têm, do que as estratégias e formas pelas quais os enfrentam. ¶ Ruth Middleton, uma mulher escravizada nos EUA do século 19, dialoga com Carolina Maria de Jesus e a poeta Lívia Natália graças à perspicácia de Fernanda Silva e Sousa, que em “Dos pés escuros que são amados” une contundência e delicadeza ao flagrar, com entonação literária, gestos de amor que permitem reconstituir a experiência de vítimas do racismo ao fio de três séculos. ¶ A memória familiar de Thaís Regina articula jornalismo de alta qualidade e ensaio pessoal ao rever em “Severinos, o Brasil é uma guerra nossa” a trajetória do avô, presidiário por mais de duas décadas, que encarna o destino de toda uma população negra subjugada por um Estado racista e demofóbico em sua essência. ¶ O corpo não binário e seu complexo diálogo com a sociedade ganha análise surpreendente por Padmateo, que em “Pepper’s Ghost” convoca Monga, a mulher gorila, Kafka e Paul Preciado para discutir as imagens possíveis de pessoas em transição. ¶ A certidão de óbito de Machado de Assis lida por Silviano Santiago e a história de como um rio ganha estatuto jurídico de ser vivo, narrada por Aparecida Vilaça, lembram ainda, por diferentes caminhos, que a luta contra o conformismo, teórico ou político, deve ser incessante no rescaldo da mais recente voga autoritária que varreu o Brasil.

Paulo Roberto Pires