Carta do editor

O ensaio pessoal resolve na prática dilemas nas relações entre o mundo e o indivíduo. Desmente, por exemplo, que, em tempos turbulentos, questões públicas eclipsam aflições íntimas. Nessa vertente do ensaísmo, que tem em Virginia Woolf sua melhor expressão, umbigo não é finalidade, mas o ponto em que a experiência singular e intransferível se espraia pelo coletivo e por ele é contaminada. ¶ Um episódio de humilhação na infância lança uma luz surpreendente sobre o terrorismo quando escrutinado por Vivian Gornick, referência para o ensaísmo pessoal, e para Gabriela Wiener, que, nos percalços da vida de seu tataravô, de quem herdou o sobrenome europeu, revê as pilhagens arqueológicas do país em que nasceu, o Peru. ¶ Em “O mal que tenho”, Igor R. Reyner recorre a Proust como antídoto para a autopiedade numa densa reflexão sobre dois enfrentamentos com o câncer. ¶ Também no registro biográfico, Yasmin Santos traça, em “Ladainha da sobrevivência”, o percurso
acidentado para a afirmação das intelectuais negras. ¶ É ainda na perspectiva pessoal, desta vez recriada por recurso literário, que Saidiya Hartman conta, em “A trama para acabar com ela”, a vida de uma mulher sem nome e sem história que é todas as mulheres negras em toda a história. Nada que Gertrude Stein não tenha sugerido quando pensou numa “autobiografia de todo mundo”.

Paulo Roberto Pires