Mais do que um verso de marchinha de carnaval, Peri beijando Ceci é a imagem que se fixou de O Guarani. Fruto do romantismo e sua ambição em criar um mito nacional fundador, o romance de José de Alencar é paradigmático de uma certa ideia de país: aquela em que o europeu entra com os princípios da civilização, constituindo um núcleo ao qual o indígena faz bem em se adequar, para desfrutar das benesses do progresso. Quanto ao nativo, sua contribuição está na relação autêntica (porque autóctone) com a terra e no vigor físico, bruto, puro e até mesmo pueril, que deverá ser burilado pelo colono benevolente e avisado.
Publicado em 1857, o “romance brasileiro” de José de Alencar conta a história de uma família que vive isolada na serra dos Órgãos, nos primórdios da colonização do Rio de Janeiro. Rodeados por mercenários e traficantes, os Mariz (o fidalgo dom Antônio, sua esposa Lauriana, seus filhos Diogo, Cecília e Isabel) se veem cercados por indígenas em busca de vingança, depois que Diogo acidentalmente mata uma jovem aimoré. A família também é traída por Loredano, um dos mercenários, que planeja raptar a bela Ceci. Quando o “castelo medieval” em que a família vive está prestes a ser tomado, a salvação aparece na figura de Peri, o goitacá de alma nobre que se apaixona por Ceci, aceita o batismo cristão e escapa com a amada para fundar uma nova raça de brasileiros.
Alfredo Bosi11 observa que O Guarani é daqueles romances que iluminam mais a época em que foram escritos do que aquela que retratam. Pode-se dar um passo além e afirmar que o romance de Alencar é daqueles que expressam, por um efeito involuntário de estrutura, atavismos muito duradouros. No esforço de capturar o olhar de seus contemporâneos, o escritor escolhe nos tempos passados em que ambienta a trama os traços que se mantiveram em sua época – e, às vezes, insere na narrativa algumas formas anacrônicas. De contrabando, incorpora ideias, estruturas de comportamento e conceitos que perdurariam até nossos dias.
Vamos, a seguir, explorar a ideia de que José de Alencar constituiu em O Guarani, particularmente por meio de dom Antônio de Mariz e Peri, um paradigma nacional involuntário. Bosi define a história de Peri como um “mito sacrificial” e aponta como cerne do romance o momento em que dom Antônio batiza o nativo e lhe transfere seu nome. Para ele, o texto expressa uma característica particular do romantismo e do nacionalismo no Brasil do século 19, tão bem representada pelo escritor cearense: trata-se de uma literatura de fundação da nacionalidade com receio de “qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas da Independência”. Onde se esperaria que o índio encarnasse a rebeldia e simbolizasse o nacionalismo em oposição à ocupação europeia, “o índio de Alencar entra em íntima comunhão com o colonizador”.