Carta do editor

Intelectual que merece esse nome é do contra. Seu compromisso deve ser com a inquietação, jamais com o apaziguamento. Onde se quer consenso, ela ou ele provocam desacordo. Apontam, sempre, a aberração na normalidade, a construção do que se quer natural. ¶ Nikole Hannah-Jones e Jason Stanley são americanos e têm muito o que dizer ao Brasil pelos temas que tratam – racismo e fascismo – e também, ou sobretudo, pela coragem de se posicionar sem rodeios no debate público. ¶ Jornalista experiente, Hannah-Jones concebeu e editou o especial Projeto 1619, que reuniu na revista do New York Times acadêmicos e escritores afro-americanos para marcar os 400 anos do início da escravidão no país. ¶ Ela demonstra por que, mais do que os chamados Pais Fundadores da nação, anônimos cidadãos negros, por muito tempo vilipendiados e perseguidos, deram e dão a real sustentação para a democracia americana, contaminada em seu nascimento por ideias escravocratas e pela defesa de privilégios. ¶ Professor de Yale, Jason Stanley pesquisa propaganda política. E não tem dúvidas de que o governo de Donald Trump replica, no seio de um regime democrático, métodos e valores do fascismo. Aliando argumentação sofisticada e contundência política, Stanley faz lembrar aos leitores brasileiros as coincidências entre Trump e o momento que vivemos. ¶ Igualmente livre de amarras corporativas e de compromissos com a mediocridade, que têm sido a tônica no debate brasileiro, Rodrigo Nunes faz para a serrote um lúcido diagnóstico do clichê mais repetido para descrever o Brasil de hoje: a polarização. Num país que se deslocou para a extrema direita, a prudência manda que não se qualifique qualquer reação contundente a esse movimento como uma radicalização no sentido oposto – todo lado, lembra ele, tem dois lados. ¶ O intelectual, como eu dizia, é aquele que faz da dissonância régua e compasso de sua atividade.

Paulo Roberto Pires