Carta do editor

Ler e escrever estão entre as atividades menos populares em tempos de obscurantismo. Quanto menos e precariamente nos informamos e nos expressamos, melhor para os que vendem autoritarismo como autoridade, truculência como firmeza, boçalidade como conservadorismo. ¶ Por isso, lembra Heloisa Starling, livreiros americanos marcaram a posse de Donald Trump distribuindo a seus clientes obras clássicas que, na ficção e no ensaio, escrutinavam regimes totalitários. A lógica é simples: quando informados, enfrentamos com firmeza o inominável. ¶ Leitor perspicaz e fino ensaísta, Stephen Greenblatt percorreu uma vez mais a obra de Shakespeare, que tão bem conhece, para identificar os momentos em que o Bardo enfrentava os tiranos de seu tempo, sublinhando assim esse legado que nos ajuda a reconhecer os que hoje tentam nos submeter. ¶ Antes de virar o Joseph Mitchell da New Yorker, o autor de O segredo de Joe Gould procurou Franz Boas e seus discípulos para conversar sobre uma profissão então pouco popular, a antropologia. E de seus entrevistados, todos eles preocupados com a diversidade das culturas, sacou no decisivo 1937 a manchete que fala por si só: “Os antropólogos riem quando Hitler fala de sua ‘Alemanha pura’”. ¶ No que chama “era do desamparo neoliberal”, o camaronês Achille Mbembe também é um incansável crítico de consensos. E lembra que, entre a utopia de um mundo sem fronteiras e a realidade hipervigiada, o que se naturaliza é a exclusão de grupos estigmatizados e marcados racialmente. ¶ Porque escrever é sempre resistir: ao clichê, ameaça permanente, e às montantes de estupidez, que vêm alcançando marcas espantosas.

Paulo Roberto Pires