Carta do editor

Ensaio é jogo e dissonância. Instância radical de liberdade de pensamento, é exercício intelectual e disciplina de guerra. E por isso mesmo necessário num mundo em que, pela fabricação de consensos, tenta-se naturalizar todo tipo de dominação. ¶ Valeria Luiselli nasceu no México e vive na mesma Nova York de Teju Cole, que nasceu nos Estados Unidos e criou-se na Nigéria. Consagrados na ficção, recorrem ao ensaio para refletir sobre xenofobia e racismo a partir de vivências pessoais que, longe de se esgotarem em seus umbigos, se abrem para a experiência coletiva. Ela, como intérprete voluntária de crianças mexicanas tentando cruzar sozinhas a fronteira americana. Ele, ao refazer a mítica viagem de James Baldwin a uma cidadezinha nos Alpes suíços. ¶ Autor de alguns dos mais belos e duros ensaios sobre o racismo, Baldwin faz das temporadas passadas em Leukerbad um sinistro inventário das conjugações do verbo discriminar. Publicado nos anos 1950, “O estranho no vilarejo” chega ao Brasil intacto e atual, tanto pela perenidade da estupidez humana quanto pelo fino bisturi com que disseca as formas de segregação. ¶ Na paisagem disforme da pós-verdade, o ensaísta é, em qualquer latitude, aquele que se ocupa das arestas.

Paulo Roberto Pires