serrote #5, julho 2010

Inconsciente, TALES AB’SÁBER

ALFABETO serrote


Ele não existe. Não tem cheiro, não é doce nem acre, não tem peso nem é aveludado e, ainda menos, não tem exten­são, norte ou leste. Porém, é preciso admitir, parece estar per­manentemente comprometido, convocado forçosamente à aparição pela mania afirmativa, vagamente superior, de alguns de nós em localizá-lo, em apontá-lo, mesmo que em seu extrato mínimo, em motivos prosaicos ou até mesmo dramáticos, ligeiramente interessados, mas sempre, e isto é o que importa, sempre em outra pessoa, jamais em nós mesmos.

Como todos já observamos, são sempre os outros que per­cebem, e insistem naquilo que em nós é relativamente incons­ciente. E essa é uma experiência comumente repetida, que evoca a aura de mal-estar do dejá-vu. O inusitado da repeti­ção, no caso, é o da forte exteriorização de nossa integridade individual naquilo que parece ser o mais importante, e que retorna a nós mesmos somente pelo olhar de outro.

E foi exatamente desse modo que, para o sorriso irônico e tardio de Rim­baud, um dos muitos precursores do assunto, houve quem dissesse, em nítido desafio à ordem da identidade, que, na dúvida, o inconsciente seria de fato qualquer coisa como o outro em nós mesmos. Assim, sua importân­cia vem crescendo exponencialmente em nosso mundo, considerando-se a interessante situação de uma coisa que não existe. Em uma época em que se tende a fazer do outro – o outro mesmo, o difícil, o não eu – qualquer coisa como uma confirmação, um objeto, um consumidor ou uma plateia, ou, ao contrário, um inimigo, a ser negado inteiramente, em um tempo como esse, alguma coisa de fato importa, mesmo que não exista, que garanta algum modo de acesso íntimo e necessário a alguma diferença.

Fica sendo o inconsciente, então, neste nosso tempo esportivo e artís­tico, autoconsciente e nitidamente afirmativo, o nosso maior outro. Talvez, ao final das contas, o nosso único outro. Sendo coisa tão rara desta espécie, como talvez possamos intuir, mesmo sem existir plenamente, é certo que ele deva adquirir um bom valor, em meio às coisas mais explícitas e reitera­das que nos cercam.

É por não existir mesmo que o inconsciente, como todos sabem, tem tanta afinidade, correspondência interior, com as coisas escondidas, com as coisas esquecidas, ou, em uma outra modalidade de sua teoria, mais contemporânea, com as coisas não acontecidas. Ele tem correspondência até mesmo com coisas ainda não nascidas, mesmo em humanos já adian­tados na idade.

Assim, em um tempo heroico de sua longa história, mas já ultrapassado pelo aumento geral de produtividade de nossa época, dizia-se que sua natureza era basicamente sexual. Isso, é claro, por mero preconceito his­toricamente constituído. Pela insistência inútil daquela época, ainda dura­mente moderna, em considerar, em um teatro libidinal próprio, o sexual a coisa mais escondida do mundo. Sem dúvida, o valor político desse erro foi imenso. Ele acabou por alimentar uma reação social de desencantamento da razão sexual muito próprio à modernidade. Hoje estamos livres das metafísicas de sacerdotes e de governos ingleses, ou austro-húngaros, que dispunham como queriam do sexual do outro, apenas para bem guardá-lo, em um segredo de polichinelo que só mesmo mandando prender o Oscar Wilde, ou o Flaubert, que era a madame Bovary.

Depois que o sexual virou a maior força da natureza da cultura, vendendo de chicabons a rifles AR-15, talvez o inconsciente sexual recalcado – o mistério autoevidente, que o sobrinho de Rameau, relembrado por Diderot, já denun­ciava com relativa facilidade em meados do século 18 – tenha mudado de sinal e busque agora ser uma tentativa, necessariamente mínima, de silenciar, por um segundo que seja, a onipresença espetacular do sexual em nossas vidas.

utra ideia interessante a seu respeito, essa com um pouco mais de sustentação nos fatos, é que o inconsciente é infantil. De fato, basta um pequeno deslocamento da atenção e nos deparamos com o infantil mal ocultado, ligeiramente exibido, em quase todos que conhecemos, e, neste caso particular, inclusive em nós mesmos. Mas o infantil que nos cerca por todos os lados é apenas um nível básico de egoísmo, genericamente capri­choso. E é por esses motivos de fundo que o infantil parece não se diferen­ciar muito das esferas mais elevadas da vida pública ou econômica, quando elas estão hiperdesenvolvidas, como é o caso claro de nossa época.

Um exemplo: basta olharmos com um pouco de cuidado para os presi­dentes eleitos no Brasil desde o advento da redemocratização, homens que conhecemos relativamente bem. O elemento infantil de cada um salta à vista, até mesmo dos que não querem ver: o gosto por heroísmos baratos, fictícios, e a transformação do país no próprio parque de diversões; o menino esperto que adora levar vantagem sobre todos os outros bobos, por tirar nota dez em tudo; o moleque risonho e astuto, feliz por ser amado por todos, inclusive, e principalmente, pelos próprios inimigos… Não é difícil percebermos que tais traços infantis de cada um de nossos grandes políticos estão precisamente projetados no coração de suas verdadeiras políticas e ideologias.

Infantil mais interessante, contra toda astúcia do mundo adulto, era a criança rica de Baudelaire, que trocava o seu brinquedo colorido e mara­vilhoso pelo rato preso que fazia a superioridade do menino pobre do outro lado da cerca… Que inconsciente hoje está disponível para tal radi­calidade infantil?

Há também a bonita e inteligente ideia, que parece vir de Lacan, de que o inconsciente é tão cristálino e superficial quanto uma carta em cima da mesa, como uma cena de um superficial e cristálino conto de Edgar Allan Poe. Isso explicaria de modo simples sua força fazer tantos estragos na vida humana, exatamente como outras coisas que também não existem tam­bém o fazem, coisas como espíritos, comunismo, justiça, ou até mesmo, para alguns, embora haja alguma controvérsia a respeito, o capitalismo… Colocando o problema de modo estético, talvez o capitalismo seja mesmo o oposto complementar do inconsciente, e compará-los em seu modo essen­cial de ser nos permita aprender algo de um e de outro, naquilo em que simplesmente se negam: enquanto o inconsciente é aquilo que não existe no humano, o capitalismo busca ser tudo o que existe para o humano…

Assim, estamos de volta, novamente, ao ponto preciso que um impor­tante, mas desconhecido, psicanalista tcheco, Franz Kafka, estabeleceu tão bem e de modo então inédito para a psicanálise, por volta do início dos anos 1920, no mesmo momento em que Freud radicalizava a sua tópica do incons­ciente sexual, visível, para chegar a sua nova tópica inconsciente do que cha­mou de além do princípio do prazer, invisível: “Só alusivamente a linguagem pode ser usada para tudo que está fora do mundo dos senti­dos, mas nunca comparativamente, nem mesmo de forma aproximada, uma vez que ela só trata, correspondendo ao mundo sensorial, da propriedade e de suas relações”.1 Enfim, seja lá o que for, a coisa do inconsciente é uma verdadeira revolta contra a inelutável modalidade do visível.

A transparência cristálina de carta roubada do incons­ciente serve, por outro lado, para nos livrarmos um pouco dele, naquela que é provavelmente a sua pior versão: a que diz que seus elementos são perigosos demais, põe em risco o humano de modo definitivo, como se entrar em contato com ele fosse um problema de desvelar e desarticular a mais perigosa conjuração.

Se, nessa direção, a preferência recair sobre os clássicos modelos paranoicos, de meu lado acho verdadeiramente mais rica a ideia, pouco desenvolvida, do inconsciente como aparecimento de fronteira, na mais ampla guerra sim­bólica e econômica entre centro e periferia da história. Lá, ou ali, na vida própria à dissolvência das fronteiras, no cora­ção das trevas, onde a lógica civilizada, que se quer racio­nal, se inverte muito facilmente nos modos do racismo, da escravidão e do sadismo – e no caso interno á Europa, do antissemitismo. Apresentações de formas mais interessan­tes, historicamente fronteiriças do inconsciente, como Brás Cubas, orientalismo, sr. Kurtz, Frantz Fanon, Abu Ghraib ou Masud Khan. Enfim, os mundos fugidios e expressivamente violentos, onde a lei moderna dos contratos e sua contra­dição específica não existiu plenamente, mas a tradição da força e do benefício econômico sim.

Embora o inconsciente não exista, há quem considere que o estranhíssimo fato dos psicanalistas existirem é um sinal epistemológico promissor. De fato, até segunda ordem, os psicanalistas existem. Esses homens dedicam suas vidas algo tristes a um método maravilhoso de cor­respondências antigas, em parte inefáveis, em parte óbvias, que lhes permitiu sobreviver sob grandes pressões e diante de violências ainda não descritas, além de terem aprendido a se transformar em brinquedos para crianças doentes e em objetos dos sonhos de adultos enigmáticos.

Para tanto, eles criaram, ao longo de quatro ou cinco gerações, uma espécie de linguagem mágica, mas consis­tente, a respeito da qual todos discordam, que enfileira mundos e mais mundos de novos objetos humanos, coisas como “pulsões sexuais, pulsões sexuais parciais, objetos transicionais, função onírica alfa, fase do espelho, supereu, pulsão de morte, transferência, transferência nega­tiva, transferência primordial, transferência lateral, transferência paradoxal, posição esquizoparanoide, personalidade como se, cena primária, id, sonho”, entre muitas outras, coisas que estão sempre se constituindo para tentar se aproximar daquilo que simplesmente nunca se viu.

No entanto, para o alívio não se sabe de quem, reza o mito que esses homens e mulheres são os únicos que parecem ter visto o inconsciente em si mesmos. Evidentemente com a ajuda de algum outro.

Por fim, para não nos alongarmos ainda mais com a nossa inconsistên­cia, eu sou um dos que trabalha e ganha dinheiro com essa coisa definiti­vamente inviável em nosso mundo. Como duvido muito do objeto, e sua natureza inconsútil, tenho tido a oportunidade de verificar todos os dias no consultório alguns efeitos ou ilusões interessantes, que muitos jurariam de pé junto ser o famigerado. Mas talvez, é possível conjecturar, essa matéria humana seja ainda outra coisa: simples realidade ainda não considerada…

Assim ele tem aparecido nos raciocínios psicanalíticos de hoje, como no O de Bion — o zero, ou Oh! de espanto, da fonte inacessível, mas imensa­mente presente, de todo sentido — ou no núcleo central silencioso de todo self, de Winnicott, fundamental a qualquer valor da experiência humana, mas, por definição, também sempre ausente. Afinal, e isto é certo, como os poetas e o oráculo sempre souberam, a voz de uma coisa que não existe só fala mesmo quando cala.

 

TALES AB’SÁBER é psicanalista. O seu livro O sonhar restaurado, formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34) ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de educação, psicologia e psicaná­lise em 2006. Escreveu um livro sobre o cinema brasileiro e a cultura dos anos 1980, A imagem fria, cinema e crise do sujeito no Brasil dos anos 80 (Ateliê, 2003). Também realizou um docu­mentário-ensaio sobre o futebol brasileiro, em parceria com Rubens Rewald, o longa-metragem Esperando Telê, de 2008. Seu ensaio “A música do tempo infinito”, sobre o mundo da música ele­trônica, apareceu em um fragmento no caderno “Mais!” da Folha de S. Paulo, no início de 2009, e, em breve, sairá na íntegra pela editora Cosac Naify.

 

1. “Aforismo 57”, in: Franz Kafka, “Os aforismos reunidos de Franz Kafka”, tradução de Modesto Carone, serrote, n. 1, p. 79.