Era uma vez um… Não, melhor: você é um ladrão que vaga por cidades e desertos de uma Pérsia mitológica roubando tapetes e pequenos tesouros. Como um ator que acaba de entrar no mundo das novelas, você é belo, jovem e atlético; a barba sempre por fazer no rosto bronzeado de surfista ocasional. Seus aliados são uma cimitarra afiada e uma besta (o animal, não a arma que arremessa setas). Você é o protagonista do jogo Prince of Persia,1 e sua situação, no momento, é a seguinte: você foi surpreendido por uma tempestade de areia e perdeu de vista Farrah, a besta, que carregava no lombo o mais recente butim. Sem ver nada, você avança com dificuldade contra o vento abrasivo da tempestade, cai dentro de um cânion e só não quebra o pescoço devido às extraordinárias habilidades atléticas já mencionadas.
Ao mesmo tempo, os pezinhos angelicais de uma moça correm pela areia dura do deserto tentando escapar de soldados armados. A fuga a leva a saltar para dentro do cânion, e ela cai em cima de você. É uma garota linda, magrela, de cabelos cortados a navalha e visual meio hippie-chique composto de uma blusinha branca esvoaçante e finamente decorada e uma calça corsário de sarja cinza-escura. Seu belo rosto lembra uma Natalie Portman de traços mais esguios e angulosos. O corpo esparramado sobre o seu. Você diz “Oi”. Ela cobre sua boca com a mão até verificar que os soldados foram despistados, olha brevemente nos seus olhos e sai correndo.
Até agora, você – o jogador, não o ladrão – estava apenas observando a cena como num filme, mas nesse instante o controle passa para as suas mãos. Instruções que surgem na tela ensinam como conduzir, com comandos do joystick, o personagem do ladrão, de uma perspectiva afastada em terceira pessoa, na perseguição à garota .2 Em poucos segundos, você aprende a andar, olhar para todos os lados, saltar e correr ao longo de paredes como um herói de filme de kung fu ou um exímio praticante de parkour. Quando você alcança a garota, ela está cercada pelos soldados, e então você aprende a enfrentá-los com espadadas, saltos e arremessos que se combinam em coreografias de notável plasticidade ao toque de poucos botões. Enquanto isso, os personagens conversam, e desde as primeiras falas fica claro que você, o ladrão, prefere se comunicar com um encadeamento interminável de piadinhas narcisistas, enquanto a garota não tem tempo para brincadeira. “Por que está me seguindo?”, ela quer saber, e você desdenha: “Estou apenas procurando Farrah”. Quando ela sugere que você pegue sua namorada e caia fora, é possível notar a semente do ciúme irracional. Você explica que Farrah é uma besta, e agora ela volta a achar que você não passa de um idiota.
Seguem-se dois momentos narrativos importantes. Primeiro, você despenca de uma ponte que foi destruída com uma rocha pelos soldados. Está caindo para a morte quando a garota executa alguma espécie de magia e, envolta por fitas azuis luminescentes, flutua, pega sua mão e o resgata em segurança até a beira do penhasco. A manobra a enfraquece, e você a ergue nos braços e a carrega carinhosamente para um local mais seguro. Nessa sequência, o jogador pode apenas controlar os passos lentos do ladrão,3 enquanto a dupla conversa automaticamente. A súbita mudança de ritmo e padrão de controle, somada à interrupção da trilha sonora, instala na mesma hora um clima de intimidade. A garota confessa que não sabe de onde acabam de surgir seus poderes mágicos e diz que precisa chegar a um certo templo. Os soldados não estão tentando matá-la; querem apenas capturá-la por ordem do pai. Pouco depois, no segundo momento importante, você é obrigado a enfrentar mais alguns espadachins e, após derrotá-los, pergunta à garota para que lado fica o templo. Ela indica o caminho e diz: “Vá na frente, eu te sigo”. E a partir de agora, até o final do jogo, é ela quem seguirá fielmente seus passos. Na luta seguinte, você descobre que pode combinar seus próprios movimentos de luta com os ataques mágicos da garota para impor dano maior aos oponentes. De repente, você não é mais tão narcisista. De repente, ela não é mais tão orgulhosa. Nasce, assim, a relação que será desenvolvida por aproximadamente 12 horas de jogo.
Uma figura corpulenta e hirsuta surge no alto de um penhasco e chama a garota pelo nome, Elika, ordenando que vá embora. É o pai dela. Vocês seguem até o templo, um palácio encimado por uma árvore colossal. O bate-papo dos personagens vai revelando mais detalhes. Esse é o templo que aprisiona Ahriman, o deus da escuridão, que ali foi trancado pelo deus da luz, Ormazd, com a ajuda do povo que costumava habitar a cidade, os Ahura.4 Elika parece desesperada para alcançar a Árvore da Vida, que lacra a cela de Ahriman, e logo entenderemos por quê: o pai de Elika, que é o rei dos Ahura, pretende libertar a divindade maligna. Vocês tentam impedi-lo, mas é tarde. Para horror de Elika, seu pai corta a árvore com a espada e Ahriman escapa, tratando imediatamente de corromper a terra-mãe dos Ahura com seres demoníacos e uma substância negra mortífera que neutraliza a luz e a cor do mundo. Com muita dificuldade, vocês escapam do palácio que desmorona e saem a tempo de ver Ahriman assomar no céu apocalíptico, berrando com uma voz cavernosa: “Sou a escuridão! Sou o seu fim!”
Você confronta Elika com seu típico sarcasmo egocêntrico: “Algum outro parente seu vai tentar nos matar, ou é apenas seu pai que deseja acabar com o mundo?”. Ela explica que ainda há tempo para impedir a fuga de Ahriman. Basta alcançar todos os “terrenos férteis” que alimentam a Árvore da Vida e restaurá-los com a magia de Elika. Você hesita em aderir à causa, mas é só charminho. “Eu estava voltando pra casa cheio de ouro!”, grita, desconsolado. “Eu teria vinhos! Mulheres! Tapetes desta grossura! Agora estou preso com um deus irritadinho e uma mulher louca!” Elika ignora esses rompantes de comédia barata. É uma mulher séria com uma missão. É uma princesa que quer salvar seu reino. Além do mais, ela acha que tudo isso é culpa dela.
Afinal, como descobriremos pouco mais adiante na história, Elika morreu e foi ressuscitada pelo pai momentos antes de o jogo começar. Isso é insinuado numa vinheta animada com cortes rápidos e em clima de pesadelo logo antes da tempestade de areia que inicia o jogo. Nela, vemos o rei conversando com Ahriman. “Você sabe o que peço!”, ele diz, e o deus da escuridão responde: “Se quer o seu pedido atendido… atenda o meu!” E então vemos um close de Elika despertando de olhos arregalados, assustada, ofegante. Amargurado, o rei negociou a libertação de Ahriman em troca da vida da filha. A Elika que conhecemos no deserto acaba de ser trazida de volta à vida ao custo da destruição total do reino. Ela não pode viver com essa culpa e deseja que seu povo, que partiu movido por uma espécie de diáspora autoinduzida que não fica bem explicada, possa voltar a sua terra e começar de novo.
O início de Prince of Persias foi descrito aqui em detalhes por uma razão: quero chamar a atenção para o fato de que ele estabelece não apenas as bases do enredo e as motivações dos personagens principais, mas sobretudo a relação entre os dois protagonistas, numa dimensão que ultrapassa o conceito clássico de narrativa que está presente no jogo na forma de diálogos automáticos e sequências cinemáticas. Você sabe que Elika precisa de você, porque teve de carregá-la desfalecida nos braços depois de ela ter voado nos ares para te salvar; não é algo que te disseram, é algo que você fez controlando diretamente o personagem. Por outro lado, você sabe que precisa de Elika porque ela usa sua magia para te salvar toda vez que você despenca em uma queda mortal ou está prestes a ser derrotado por um inimigo. Outro exemplo: no início, você precisa perseguir Elika para que o jogo avance; então, ela passa a seguir todos os seus movimentos. Pode parecer místico ou ingênuo para quem nunca experimentou jogar um game com alguma complexidade narrativa, mas o fato é que o jogador sente essa diferença de uma forma bem mais envolvente e íntima do que numa recepção que não depende de sua interferência ativa, como num livro ou num filme. O envolvimento não é apenas abstrato. A evolução narrativa se dá num nebuloso limiar entre a abstração e a experiência real. Ela passou a me seguir. Ela confia em mim. Vou pular nesse buraco pra ver ela me salvar.
As sequências iniciais do jogo foram programadas com destreza para que o jogador vivencie o vínculo que nasce entre os protagonistas e compreenda desde já quais são as regras da relação que manterão ao longo da história. Essa relação não é apenas um dado do enredo: ela determina o que Janet H. Murray6 chama de “primitivas de participação”, ou as formas mais básicas pelas quais é permitido ao jogador participar ativamente da condução da história em uma narrativa interativa. Isso é um componente essencial do que acabei de chamar um tanto vagamente de “dimensão que ultrapassa o conceito clássico de narrativa”. Em cerca de 15 minutos de jogo, Prince of Persia deixa bem claro, por meio de suas primitivas de participação, que, sem ter um ao outro, você e Elika não são ninguém.
IMERSÃO, AGÊNCIA E ADOLESCÊNCIA
Quando me vejo na posição de defender a força narrativa dos videogames, gosto de citar uma experiência real que tive na infância envolvendo o jogo Metroid. Nessa aventura de ficção científica, controlamos um caçador de recompensas chamado Samus Aran pelas plataformas 21) do labiríntico e hostil planeta Zebes para aniquilar uma turma de piratas espaciais. Não é o caso de entrar em detalhes da trama. O que importa é que Samus veste uma armadura de corpo inteiro enquanto o controlamos em combates e explorações durante horas e horas, até que, no fim, depois de encontrar e destruir o cérebro-mãe, Samus – ou seja, você mesmo, pois a distinção já está de certa forma apagada a essa altura – tira o capacete e revela ser uma mulher. Ainda levaria anos para que Lara Croft sedimentasse a era das grandes heroínas dos jogos de ação. No final da década de 1980, um caçador de recompensas era, por definição, um homem, e as moças eram tipicamente como Peach, de Super Mario Bros: princesas a ser resgatadas.
A surpresa arrebatou muitos pirralhos gamers como eu. Não era só que Samus era mulher: eu tinha controlado uma mulher o tempo todo, sem saber. O personagem de um game é, afinal, a fusão dos dados fornecidos pelo programa com a participação ativa do jogador que o controla. Você não está apenas imaginando ou vendo o personagem. Em certo sentido, você o representa fisicamente, não como um ator, mas como se ocupasse um boneco com um conjunto de habilidades predefinido e um destino a cumprir.
Muitos anos depois, quando li Grande sertão: veredas, lembrei imediatamente de Samus quando cheguei na parte em que é revelado o sexo de Diadorim. A surpresa do romance de Guimarães Rosa me tinha sido negada pela série da Tv Globo, que meio que a arruinou para todo o povo brasileiro, para todo o sempre, mas o que pensei foi: “Pra quem chegou até aqui e não sabia, deve ter sido como chegar ao final de Metroid sem saber. Uau!”7
A anedota aponta para um fato: a sublimidade da narrativa é possível no meio dos jogos eletrônicos, mas ela não se encontra só no nível do enredo. A história de Metroid é, em si, dramaticamente insípida, ainda que a concepção inspirada de seu universo fantasioso tenha rendido muitos jogos e toneladas de fan-fiction. Onde se encontra, então, esse pontencial para o sublime? Se não foram 600 páginas de prosa refinada que me conduziram a tal impacto emocional, o que foi?
Por muitos anos, o termo “jogabilidade” vem sendo usado no mundo dos videogames para se referir a essa qualidade de prazer narrativo que parece depender de conceitos pouco claros de interação, controle, fluidez e diversão. Não usarei esse termo porque ele não significa nada, é só uma saída fácil para uma questão mais complexa do que se quer reconhecer. Além disso, a tradução forçada perde o significado do original playability. Play, em inglês, se refere a muito mais que “jogo”. Pode ser traduzido também como brincadeira, fingimento, representação, atuação, disputa, gozação e mais um monte de coisas, atuando como substantivo ou verbo. Deixemos a jogabilidade de lado.
Um dos primeiros e mais sólidos esforços de explicar a origem do prazer de fruir uma narrativa interativa foi feito por Janet Murray em Hamlet no Holodeck. De acordo com Murray, as narrativas possibilitadas pelo computador (entendido num sentido genérico que engloba os videogames, a realidade virtual e todo tipo de narrativa digital interativa) acarretam três prazeres característicos que dão continuidade às tradições narrativas anteriores, mas que, em outros aspectos, são únicos, especialmente quando combinados entre si: imersão, agência e transformação. A transformação se refere à capacidade de pôr em movimento narrativas com múltiplos enredos e papéis e que podem mudar de forma à medida que são contadas e afetadas pela participação do receptor. Embora esse aspecto possa ser encontrado em muitos jogos eletrônicos, como os MMORPGS (World of Warcraft, Age of Conan, Everquest etc.),8 por exemplo, esse não é o caso de Prince of Persia, um jogo linear single -player, feito para ser jogado sozinho e no controle de um único personagem. Focarei, portanto, nos outros dois aspectos.
A imersão não é novidade. Murray a define como “a experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado [ … ], independentemente do conteúdo da fantasia”. É o que as descrições e ilustrações dos livros e a produção de arte dos palcos e estúdios de cinema têm feito há séculos. Corretamente estimulada, nossa mente devora fantasias e se entrega totalmente a elas, desde que o transe imersivo não seja arruinado por algo que nos faça lembrar que aquilo é só representação. É paradoxal: para seguir acreditando num mundo de fantasia e sentir-se imerso nele, é necessário afastá-lo um pouco para preservá-lo da contaminação da realidade. Isso fica claro quando a chamada “quarta parede”, termo que os dramaturgos cunharam para se referir à separação entre o palco e a plateia, é violada. Quando um ator busca a participação do público ou um personagem de um filme olha para a câmera e diz algo como “isso é só cinema”, o transe imersivo é fraturado. A arte moderna se refestela brincando com esse tipo de coisa, com resultados variados.
No mundo dos jogos eletrônicos, contudo, as regras parecem ser outras. Jogos são participativos por definição. Sem nossa intervenção voluntária constante, eles não acontecem. Quando o assunto é envolvimento narrativo, participação e imersão andam de mãos dadas nos videogames. A participação não é uma exceção à regra; ela é a regra. Suspender a participação do jogador é o que rompe a imersão num videogame. Nenhum jogador gosta de ser guiado por um cenário ou submetido a longas sequências não interativas. Ele quer apertar botões, escolher para onde ir, disparar armas de plástico contra a tela ou golpear com o controle sensível a movimentos do Nintendo Wii como se fosse uma raquete ou espada e ser constantemente confrontado com um mundo que precisa decifrar, solucionar e modificar ativamente.
Quando o jogador consegue agir nesse mundo de fantasia e desfrutar o resultado dessas ações de maneira prazerosa, ocorre o que Murray chama de agência. Você olha para o alto e enxerga um fabuloso detalhe do cenário só porque decidiu olhar para o alto e executou o comando correspondente no joystick. Você dá uma raquetada com seu Wiimote, a bola virtual vai na direção que você pretendia e, Rá!, você acaba de quebrar o saque do seu amigo otário. Você dá um tiro no tonel de óleo diesel e ele explode com uma animação vibrante e um som crocante de explosão. Bum! De quebra, você mandou para os ares o corpo de um inimigo oculto, que voa em chamas e ricocheteia numa parede, morto, fora do seu caminho. Você mirou e pressionou um único botão; a resposta da arma foi imediata, o ruído do disparo fez cócegas no ouvido de tão realista, o furo apareceu exatamente no ponto do tonel em que você tinha mirado, e todas essas coisas sensacionais aconteceram e agora você está mais perto de salvar a própria pele, ou o mundo, ou de resgatar sua amada ou de destruir tudo sem motivo nenhum. Não importa o objetivo, e sim o prazer da agência. O mundo reagiu deliciosamente à sua intervenção. Eu fiz isso.
A recompensa sensorial proporcionada pela potente combinação de imersão com agência explica por que é tão prazeroso simplesmente vagar pelo cenário de um jogo quando seus programadores o desenvolvem com um patamar mínimo de liberdade de movimentação e requinte artístico. Jogadores de perfil mais explorador fazem questão de encontrar e investigar cada recanto dos mundos virtuais em que navegam, mesmo que isso seja inútil para o objetivo do jogo. Embora esse aspecto tenha se intensificado com a evolução da qualidade gráfica dos mundos tridimensionais, ele existia mesmo em jogos mais rudimentares, como o Pitfall do Atari 2600. Havia um jogo para Nintendo 8-bits, um RPG de ação em plataformas chamado Iron Sword, que me fascinava quando criança. Eu nunca entendi muito bem como jogar, e tinha imensa dificuldade para passar de fase e cumprir objetivos, mas seus cenários bidimensionais eram vastos e misteriosos, com montanhas e fossos intermináveis e repletos de seres, ruídos e objetos estranhos, e passei muitas horas simplesmente explorando os limites daquele cenário, saltando de um lugar para outro, tentando não morrer, apenas porque controlar aquele bonequinho de armadura e ver as coisas que surgiam era incrivelmente estimulante para a minha imaginação.
Alguns jogos mais recentes exploram esse aspecto ambiental do prazer narrativo com muita eficiência. Um deles é o aclamado Half- Life 2, de 2004, um jogo de tiro em primeira pessoa em que assumimos o papel do cientista Gordon Freeman, que luta na resistência terrena contra os invasores de uma civilização alienígena conhecida como Combine. Half- Life 2 tem como uma de suas características marcantes a manutenção permanente de uma perspectiva interativa em primeira pessoa. Vemos o que Freeman vê e nada mais, e o controle do personagem jamais é tirado do jogador. Quando um personagem olha no olho de Freeman, ele olha no olho do jogador sentado na poltrona da sala. Essa imersão profunda e sem ruídos é reforçada por gráficos muito bonitos e elaborados e por uma condução eletrizante do ritmo da narrativa, que alterna momentos de exploração, tiroteio e interação com outros personagens. Em diversos pontos do jogo original e dos dois episódios extras lançados até hoje, sequências tensas de combate e fuga são sucedidas por momentos de descanso em que o jogador se vê finalmente são e salvo em um local elevado de onde pode contemplar o cenário vasto e deslumbrante no qual acaba de passar por apuros.
Os desenvolvedores da Valve sabiam muito bem o que estavam fazendo. A visão despreocupada desses cenários lindos logo depois de situações de grande tensão induz uma experiência sublime. Schopenhauer, em A metafísica do belo, afirmava: “O sentimento do sublime se diferencia do belo apenas por uma adição: o elevar-se para além da conhecida relação hostil do objeto contemplado com a vontade”. O sublime estético surge da inesperada posição de segurança diante de algo que – sentimos intuitivamente – poderia nos aniquilar: o maremoto visto do helicóptero, o céu estrelado visto na companhia de alguém querido, o silêncio absoluto desligado de circunstâncias hostis. Em um videogame, todo cenário abriga ameaças, e a precaução é a atitude padrão do jogador. Quando o jogo nos oferece descanso e uma bela vista, o prazer sensorial é intenso e real. Outros exemplos recentes de jogos que exploram amplamente esse prazer são Flower, um brilhante título independente para PlayStation3, e Uncharted2, também exclusivo do Ps3. Neste último, depois de horas de ação frenética, o herói Nathan Drake acorda ferido, sem saber onde está, e perambula por um vilarejo tibetano encravado no coração dos Himalaias. O cenário é magnífico. Não há inimigos, só uma comunidade pacífica com a qual podemos interagir sem nenhum objetivo aparente. Você entra numa cabana e encontra um velhinho tocando um instrumento exótico. Chuta uma bola de volta para as crianças e, mais adiante, as encontra escondidas atrás do muro, à sua espera, e as risadas infantis cortam o silêncio da altitude quando você as descobre. Imersão e agência. Por isso, algumas fases depois, quando retorna de uma exploração na neve e encontra o vilarejo em chamas, cheio de corpos assassinados, você sente raiva e tristeza verdadeiras, e a sequência de combate que se inicia será jogada com um genuíno desejo de vingança.
Prince of Persia faz uso muito eficiente da função imersiva do ambiente para fins narrativos. Basta ver algumas imagens estáticas do jogo para averiguar a beleza de seus personagens e cenários. São vales verdejantes, moinhos de madeira amontoando-se em estruturas megalomaníacas, cachoeiras e penhascos que conduzem a torres impossivelmente altas de onde se pode ver balões gigantescos desafiando a gravidade. E os detalhes! Borboletas de várias cores tocam o capim florido e circulam ao redor do casal protagonista, grades com intrincados motivos orientais filtram a luz amarela de um sol baço. Em movimento, o jogo nos arrebata com frequentes exibições de virtuosismo artístico. O desejo de deleitar o jogador com imagem, som e movimento é tão entranhado nesse jogo que há dois troféus secretos9 que se pode obter simplesmente andando até a beira de vigas em locais altos para contemplar a vista.
O problema, recorde, é que Ahriman escapou e corrompeu tudo com a supracitada substância negra mortífera que neutraliza a luz e a cor do mundo. Na prática, isso significa que os diversos setores do reino estão cinzentos, frios, sem vida e tomados por fossos e bolhas rastejantes de gosma preta letal. Para restaurar cada setor – ou, para usar a terminologia dos games, concluir cada fase – você, ladrão, tem que atravessar os cenários cheios de perigos, matar monstros evocados por Ahriman e alcançar os terrenos férteis, locais em que Elika pode transferir para o cenário a energia mágica que trouxe consigo do além. Chegar até os tais terrenos não é fácil e exigirá um espetáculo de acrobacias, lutas e resolução de enigmas. Elika o acompanha de perto. Sempre que você cai, ela te salva na hora, de modo que você nunca morre. Em certas manobras, como transpondo videiras na face de penhascos, ela subirá elegantemente na sua garupa e terá de ouvir de você coisas como “Você pesa mais do que parece”. É, você é esse tipo de cara.
Quando Elika enfim restaura um terreno fértil, a cor e a vida retornam a toda aquela fase. Isso acontece em tempo real com um encantador efeito de animação que se expande radialmente tomando conta do cenário visível e revelando a beleza natural e arquitetônica até então oculta. A sensação de estar agindo de forma tão radical em todo o cenário do jogo não só encharca o jogador com os prazeres do coquetel imersão/agência, mas também reforça a compreensão dos anseios de Elika. A cada restauração, vemos e sentimos pelo que, afinal, ela está lutando. O reino da princesa é lindo de doer, e descobrir aos poucos cada novo ambiente desse mundo desabitado ao lado de Elika vai fortalecendo o laço entre os personagens, ou seja, o nosso laço com ela. Um sub-texto mítico – ou até mesmo bíblico, se forçarmos um pouco a barra – assoma aos poucos, à medida que esse paraíso é descortinado por seu único casal de habitantes.10
E mais: depois da restauração mágica, Elika desmaia e acorda logo em seguida, muito enfraquecida. Surgem, então, dezenas de esferas luminosas espalhadas por todos os cantos do cenário. Você deve chegar até elas e coletá-las para reabastecer a energia vital de Elika. É uma tarefa mecânica, complicada e, pelo menos de início, absurda. Nesse ponto, muitos jogadores praguejarão contra a Ubisoft por ter estendido artificialmente a duração do jogo, forçando-nos a cumprir uma tarefa sem sentido, compensada apenas, talvez, pela beleza do cenário e pela satisfação de percorrê-lo vertiginosamente com os movimentos fluidos do personagem que está sob seu controle. Ver a dupla de heróis responder a nossos comandos com ações tão plásticas e eficientes, numa dupla coreografia que enche os olhos e proporciona uma navegação prazerosa pelo reino dos Ahura, facilita muito a permanência do jogador no transe imersivo, mas, sem um propósito claro, essa magia pode ser desfeita diante do primeiro instante de frustração, como a incapacidade de alcançar aquela plataforma onde estão as três esferas luminosas que preciso coletar para ir em frente. Aos poucos, porém, conforme a relação com Elika vai se solidificando, a motivação para cumprir essa exigência do jogo vai ganhando forma. A cada nova fase, é mais desagradável ver Elika em apuros. Houve um momento em que deixei de ver essa etapa como uma obrigação. Não era uma questão de querer ou não querer fazer. Eu tinha de ajudar minha companheira porque gostava dela.
A orquestração de Prince of Persia para que se estabeleça um vínculo afetivo entre o ladrão/jogador e Elika vai além da mútua dependência que se manifesta na própria mecânica do jogo. Há um outro recurso, igualmente crucial: o sistema de diálogos. Em jogos de aventura como esse, o mais comum é que os personagens conversem quando o programa quer que conversem. As falas são acionadas em momentos específicos da narrativa, e o jogador só tem o trabalho de ouvi-las. É assim nos dois jogos da série Uncharted, por exemplo, que tentam com tanta força ser um filme de ação que conseguem, para o bem e para o mal.11 Em Prince of Persia, há alguns diálogos que entram automaticamente em situações-chave, sobretudo entre os protagonistas e os demais personagens. Porém, a maior parte dos diálogos entre você e Elika só ocorre se o jogador se aproxima dela e pressiona um botão específico. Isso desencadeia uma troca de falas que só prosseguirá se você continuar apertando o botão de vez em quando.
Você não precisa fazer isso. É possível ir até o fim do jogo sem forçar o ladrão e Elika a bater papo, e 90% do que eles dizem soa como tagarelice. Mas é nesses diálogos opcionais que a maior parte da história pregressa, da personalidade, das ideias e dos desejos dos protagonistas vem à tona. Ao optar por esse sistema de acionamento de diálogos à primeira vista tosco e desnecessário, o pessoal da Ubisoft Montreal estava na verdade demonstrando um conhecimento profundo do poder da agência na narrativa dos games. Colocando de forma simples: escutar um diálogo passivamente e escutar um diálogo acionado por um botão que você pressionou quando quis são experiências muito diversas. Talvez isso soe absurdo, mas não é. É difícil de explicar e difícil de argumentar a favor de uma proposição tão esotérica, mas ao pressionar aquele botão é como se participássemos ativamente do diálogo. As falas não são do jogador, são dos roteiristas do jogo, mas se tornam dele também quando ele pressiona o botão.
Boa parte das falas do ladrão, ou seja, as suas falas, seguem aquele registro de sarcasmo narcisista já mencionado. Esse perfil maroto e espertinho enfureceu muitos jogadores de Prince of Persia. De fato, a maior parte do tempo você soa como um adolescente burro em violenta transição hormonal. Diz coisas como “se aquietar, achar uma garota, aventuras matam… acho que minha mãe tinha razão” e “Deuses, monstros, mulheres loucas… qual a diferença?” Provoca Elika como um menino apaixonado que, frustrado por não ser capaz de se declarar, ofende a amada com besteiras do tipo: “Até que você está em forma, para uma princesa”. Não para de choramingar pela perda de sua besta de carga, pelo ouro roubado e pelo infortúnio de estar arriscando a vida para ajudar uma linda garota idealista a enfrentar um deus maligno. Sua postura evasiva e prática contrasta com a sinceridade e o idealismo de Elika. Tudo isso é enfatizado com habilidade por Nolan North, que dubla o personagem como o que ele realmente é: uma mistura de Han Solo e Indiana Jones com um garotão praticante de esportes radicais.
Elika é muito diferente. Seu discurso firme é marcado pelas boas intenções, pelo apego à história de seu povo e pela culpa por um ato destrutivo que não cometeu. Ela acha você um palhaço, mas um palhaço valoroso e de bom coração, e não hesita em contar detalhes de sua vida. Resiste solidamente a suas cantadas inoportunas e desajeitadas. A dinâmica é bastante infantil, na verdade. Um diálogo típico entre você e Elika:
ELIKA: Por que está fazendo isso? Por que está me ajudando? Não está fazendo isso por minha causa, está? Percebi o jeito como você me olha… conheço esse tipo de olhar…
VOCÊ: Olha, você é gatinha, mas não gatinha do tipo “eu enfrentaria um deus maligno por ela”.
ELIKA: Você teria ajudado… se meu pai tivesse pedido?
VOCÊ: Ele não é tão gatinho assim, também.
Ou:
VOCÊ: Você não age como uma princesa. ELIKA: Como as princesas agem?
VOCÊ: Dinheiro de sobra, bom senso em falta. Não sabem que lado do camelo come e que lado…
ELIKA: Eu sei que lado do camelo serve pra quê. você: Uma princesa. Uma princesa de verdade. ELIKA: E você? Quem é você?
VOCÊ: Não há muito o que contar.
No entanto, como veremos mais adiante, nenhum dos dois é tão raso e definido quanto parece. Há um motivo para o cinismo da boca para fora do ladrão e há um motivo para a teimosia idealista de Elika: são sintomas da adolescência contemporânea colados a personagens de uma história ambientada numa versão muito livre da antiga Pérsia, e talvez esse anacronismo explique a irritação de muitos jogadores. A adolescência, no entanto, é característica de vários protagonistas de jogos eletrônicos, pois proporciona um modelo narrativo de transformação do personagem com o qual o público jovem se identifica naturalmente.12 Mas em vez de proteger a adolescência por trás das virtudes mais bem resolvidas do heroísmo adulto, como é de praxe, Prince of Persia a trata com certo realismo estilístico que pode soar incômodo a alguns. De qualquer modo, a verdade está nas sutilezas, e esses dois, como todo bom personagem, se transformam ao longo da narrativa. Não é à toa que Andy Walsh, autor dos diálogos de Prince of Persia, ganhou o Writers’ Guild of Great Britain Games Award por seu trabalho no jogo. Mesmo nos excertos acima, é possível captar insinuações, como a atração velada de Elika e a decência geral que o ladrão esconde por trás da fachada de garotão esperto. Não basta pressionar o botão de diálogo. Você precisa escutar com atenção.
Há uma história secreta sendo contada não apenas nas entrelinhas do que os personagens dizem, mas no espaço entre um salto e outro, na laboriosa captura de cada esfera de luz, em cada gesto cooperativo na batalha e no vazio sublime e estonteante desses cenários restaurados; uma história alicerçada pelos dois grandes temas que perpassam a narrativa humana desde os primórdios, que deram força a incontáveis histórias em livro, palco, película, tela, voz, instrumento musical e parede de caverna, e que agora vêm dar força, sim, por que não?, às histórias contadas nos jogos eletrônicos.
AMOR, MORTE E ALGORITMOS
Em 2007, um programador de 30 anos chamado Jason Rohrer causou sensação nas comunidades de jogos independentes com um joguinho gratuito chamado Passage.13 Com duração exata de cinco minutos e gráficos primitivos que remetem à era dos jogos 8-bits, Passage coloca você no controle do bonequinho de um homem que se locomove da esquerda para a direita numa faixa estreita de cenário. Não há instruções de nenhum tipo. Logo de cara, seu avatar14 encontra uma garota parada no topo da tela. Se você encostar nela, ela gruda em você como sua esposa e o acompanha até o fim do jogo. Enquanto se desloca pelo cenário labiríntico, evitando becos sem saída e tentando pegar tesouros que valem pontos, embalado por uma melodia digital melancólica, você percebe coisas estranhas. O canto esquerdo do cenário, ou seja, aquilo que você está deixando para trás e que antes estava perfeitamente definido, vai ficando cada vez mais borrado; o canto direito, para onde você avança rumo a lugares ainda desconhecidos que surgem de um grande borrão, começa a ficar cada vez mais definido. Você – e sua companheira, caso tenha optado por levá-la consigo – também está mudando. No início, é difícil perceber a natureza da mudança, mas lá pelo segundo, talvez terceiro minuto do jogo, ela ficará clara: você está envelhecendo. O cenário está ficando cada vez mais desbotado. Cada passo adiante vale pontos, mas seguir em linha reta o privará de explorar recantos interessantes. E mais: sua velocidade diminui com o passar do tempo. Você tenta descobrir como evitar isso, mas não há o que fazer senão ir em frente. Sozinho, você ocupa menos espaço, anda mais rápido e pode pegar atalhos estreitos; acompanhado da esposa, precisa pegar desvios que o atrasam ou até bloqueiam, mas cada tesouro encontrado rende o dobro de pontos. Não é possível alterar a escolha feita: a opção pela solidão ou pelo casamento é definitiva. Aos quatro minutos e pouco, sua mulher morre. Você segue em frente sem ela, solitário nos segundos que lhe restam. Aos cinco minutos, já velhinho e quase incapaz de andar, com o passado na forma de um borrão enorme atrás de si, o futuro nítido à frente e, entre uma coisa e outra, um percurso de tentativas parcialmente bem-sucedidas de entender o que precisava ser feito, você se curva e morre. Não há derrota nem vitória, apenas o fim. Game over.
Descrito dessa maneira, Passage é apenas mais uma representação engenhosa da inexorabilidade da passagem do tempo e da morte, coisa que estamos cansados – ou que não nos cansamos – de encontrar na arte de todos os tipos e épocas. Mas havia algo jamais visto nesse joguinho, algo que tirou lágrimas de muitos jogadores desavisados. Depoimentos em sites como Destructoid mencionam sensações de vazio e tristeza (“Adorei… e estou me sentindo meio vazio por dentro”; “Meu coração afundou quando minha esposa morreu”; “Esse jogo me deprimiu e me deu vontade de procurar um emprego que pague bem, e não estou brincando”), exultação (“Por alguma razão, esse jogo me encheu de ânimo”) e projeções da experiência da partida na vida pessoal do jogador (“Só fui andando reto e pegando todos os baús que encontrava […] e agora fiquei deprimido porque vi que estou fazendo a mesma coisa da minha vida”).15 Como uma obra de gráficos e som tão limitados, sem nenhuma presença de texto ou condução narrativa convencional, foi capaz de causar tanto impacto?
Para encontrar a resposta, é preciso compreender que os jogos eletrônicos são narrativas procedimentais, ou seja, um conjunto de regras que devem ser aprendidas e aplicadas com habilidade para alcançar determinado resultado. O enredo de um jogo pode ser simplesmente um encadeamento de episódios que configuram um sentido, uma narrativa clássica, mas o jogo em si não é isso. É um esquema a ser executado. Em outras palavras, a lógica profunda por trás de todo jogo eletrônico é o algoritmo, que o Dicionário Houaiss define, na acepção própria da informática, como um “conjunto das regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas”. Jogar é, antes de tudo, desvendar e dominar um algoritmo. Independentemente da história, de ela estar situada num universo realista ou numa fantasia medieval ou de ficção científica, de possuir ou não personagens cativantes e episódios engraçados ou dramáticos, o que precisamos fazer num jogo eletrônico é:
1. Descobrir o que deve ser feito;
2. Descobrir por meio de quais procedimentos o programa nos permite que isso seja feito;
3. Dominar a execução desses procedimentos;
4. Fazer o que deve ser feito.
Dito assim, jogar um game parece ser tão estimulante quanto consertar um cano ou tratar uma dor de dente, mas lembre-se do nosso trio imersão/agência/transformação, do grande prazer sensorial e estético que os videogames são capazes de proporcionar e da combinação desse componente procedimental com a narrativa episódica clássica dos livros, filmes etc. O mais importante de tudo, porém, é que estamos falando de narrativas procedimentais. Isso significa que procedimentos também podem ter função narrativa. Interpretar as regras de um jogo e executá-las não é uma tarefa necessariamente mecânica; ela pode ter – e no caso dos jogos eletrônicos deve ter –— uma função alegórica. Essa é a chave para o potencial expressivo dos videogames: as regras do jogo contam uma história.
O crítico americano McKenzie Wark não só entendeu isso, mas tentou levar a ideia às últimas consequências em seu provocador livro Gamer Theory.16 Wark cunha o termo “alegoritmo” para designar, no contexto dos games, o algoritmo computacional imbuído de poder alegórico. A relação intuitiva que temos com o conjunto finito de regras e resultados que rege um jogo pode ser projetada no conjunto infinito de regras e resultados da vida real, gerando uma parábola narrativa. Os jogos podem parecer modelos toscos do mundo, mas seus padrões restritos podem remeter aos padrões mais esfíngicos e entrópicos da vida real, e nesse sentido podemos vê-los também como representações digitais depuradas de uma realidade “suja”. Segundo Wark:
“Do ponto de vista da representação, o jogo é sempre inadequado à vida cotidiana. Um Sim no jogo The Sims é um personagem animado simples, com poucos traços e expressões faciais. Em The Sims 2 eles parecem um pouco mais realistas, mas a melhoria na representação, em alguns aspectos particulares, apenas eleva os padrões que fazem que deixe a desejar em outros aspectos. Do ponto de vista do alegoritmo, parece que o inverso é mais válido. A vida cotidiana, como espaço de jogo, parece uma versão imperfeita do jogo eletrônico. O espaço de jogo da vida cotidiana pode ser mais complexo e diversificado, mas parece ser muito menos consistente, coerente e justo.”
A conversão das experiências do mundo real em narrativas procedimentais esquematizadas que podem ser interpretadas e executadas até que se atinja objetivos claros e definidos é um atributo que distingue o jogo eletrônico de todas as outras formas de narrativa. É disso, e não apenas do prazer estético proporcionado pelo conteúdo do jogo em si – imagem, música, texto, diálogos dublados, animação e demais elementos reciclados de outros meios – que surge o prazer do jogo. Ao afirmar que a vida, com suas altas doses de caos, informação inacessível e anarquia de resultados, é uma cópia malfeita do jogo eletrônico, e não o contrário, Wark está fazendo uma provocação aparentemente absurda, mas que contém alguma verdade. O jogo eletrônico oferece objetos tangíveis ao nosso desejo de interpretar o mundo e de intervir nele. No jogo, toda experiência é quantificável, e o processo participativo pelo qual o enredo será desvelado pesa mais que o próprio enredo para gerar significado.
Eis, portanto, a chave para compreender a força de Passage: o jogo é alegoritmo em estado puro. Nele, o processo de descobrir as regras do jogo e tentar executá-las é a própria mensagem: só aprendemos a viver vivendo; temos de tomar decisões como a de casar ou não com uma mulher antes de ter a experiência e a perspectiva necessárias para isso; optar por uma coisa implica sempre abdicar de outras; não se pode voltar atrás; cada instante é resultado de todas as ações anteriores; o passado se apaga; o amor conforta; o fim é solitário e inevitável. O que torna o jogo comovente não é a atuação tocante do casal de protagonistas, belas imagens ou palavras formando um fluxo de consciência virtuosístico, mas o ato de tentar descobrir o que está acontecendo, agir para dar um rumo à história e, num instante de epifania – quando você entende que seu avatar está envelhecendo e que nada se pode fazer a respeito – perceber que o algoritmo fugaz é uma alegoria da sua própria mortalidade. O ato de jogar contém o significado.
Quando joguei Passage pela primeira vez (no caso desse jogo, a única vez que conta), passei reto pela garota. Simplesmente não percebi que ela estava ali parada, esperando que eu a tomasse pela mão ou decidisse viver minha vida sozinho. Na segunda partida, descobri sua existência e por alguns instantes senti de maneira muito profunda e nítida que tinha deixado o amor da minha vida passar despercebido. Eu estava repetindo a experiência e tinha uma nova chance, coisa que a vida real não permite, mas a constatação me deu a sensação de uma perda irreversível. Projetei a maneira de jogar na minha própria experiência subjetiva e obtive uma história particular e uma emoção específica. Isso é narrativa procedimental. Estamos apenas começando a descobrir do que ela é capaz.
O que já está claro, a essa altura, é que o amor e a morte vão se impondo como os dois grandes temas presentes nos jogos que estão explorando novos territórios nas narrativas procedimentais e, com isso, abrindo caminho para uma linguagem própria que explore todo o potencial expressivo do meio. Os exemplos vão de diminutos jogos independentes como Passage até blockbusters como Call of Duty 4: Modern Warfare, que contém duas sequências potentes em que o jogador morre de um ponto de vista em primeira pessoa. Uma delas, na qual somos forçados a assumir o papel de um soldado que se arrasta para a morte após a detonação de uma bomba atômica, já é um instante clássico da história dos games. Aos poucos, a morte no contexto dos videogames deixa de ser simplesmente um elemento da mecânica de jogo – a punição simbólica ao jogador que fracassa em cumprir um objetivo – e se torna um tema profundamente entranhado nos enredos e algoritmos para afetar emocionalmente o jogador.
Nesse sentido, Prince of Persia foi pioneiro ao excluir totalmente a morte do avatar de seu sistema de jogo. Como já mencionado, o ladrão/você nunca morre. Elika o salvará todas as vezes, usando seus dotes mágicos para catapultá-lo de volta a um ponto seguro do cenário, em geral logo antes do último desafio que você estava tentando superar. Boa parte da comunidade gamer crucificou esse aspecto do jogo, acusando Prince of Persia de ser fácil demais. Na verdade, ele só consolidou uma tendência que vinha se desenhando há muito tempo, desde a instituição dos save games nas gerações de consoles 8-bits, passando pelo advento mais recente dos checkpoints, ou marcos da narrativa nos quais você “ressuscita” depois de “morrer” para poder continuar jogando sem voltar ao início. Em vez de deixar você morrer e informar isso com uma mensagem ou tela preta, Prince of Persia pune sua falta de habilidade com um pequeno recuo que está elegantemente incorporado ao fluxo dinâmico do jogo e ao enredo. O fato de Elika sempre salvar você tem imenso significado para os rumos que a história acaba tomando e apenas reforça uma dependência mútua dos personagens sobre a qual o jogador não é informado, mas que experimenta na prática toda vez que faz o ladrão errar um salto ou apanhar demais numa luta.
Quanto ao amor, bem, a essa altura não deve ser mistério para ninguém que você se apaixonará por Elika. Casos de amor sempre foram comuns nos videogames, embora predominem as manifestações de amor pudico e platônico (a série Zelda, da Nintendo, por exemplo, sempre me irritou um pouco por deixar as paixonites de Link com conclusões insatisfatórias), com poucas ocorrências de paixão consumada e raríssimos episódios de sexo casual (o formidável No More Heroes, para Wii, é uma exceção recente). Mais comuns ainda, quem sabe, são os casos de amor platônico do jogador pelo personagem. Eu mesmo não tenho vergonha nenhuma de assumir que me apaixonei de leve pela Jade de Beyond Good & Evil, paixão que assomou após a conclusão do jogo, uma vez que antes disso eu a estava controlando, o que confundia as coisas. Não me importaria nem um pouco de encontrar a Sylvia Christel de No More Heroes a sós, também. Mas divago. O fato é que o amor, assim como a morte, tem assumido novas formas nos jogos dos últimos dez anos. Alguns criadores têm procurado fazer que a mecânica de seus jogos leve o jogador a desenvolver, no nível procedimental, um apego análogo ao que seu avatar tem pela amada no nível da história. Quando amor e morte são combinados entre si de maneira inteligente nas dimensões interdependentes do enredo e da narrativa procedimental, o resultado pode ser uma experiência emocional inesquecível.
Isso nos traz ao incontornável Shadow of the Colossus, lançado em 2005 e considerado um marco dos chamados games de arte. Desenvolvido pelo Team Ico, do venerado Fumito Ueda, Colossus trata da aventura de Wander, um cavaleiro solitário que traz o corpo de sua falecida amada a uma terra distante onde reside uma divindade capaz de trazer os mortos de volta à vida. A divindade, manifestando-se numa voz cavernosa que surge do alto do templo, barganha com o herói: se ele matar os 16 colossos que vivem na região, a garota será ressuscitada. Não entrarei em detalhes sobre a trama do jogo porque a considero sagrada – me basta a culpa de entregar o final de Prince of Persia, o que estou prestes a fazer. Minha recomendação é que você obtenha acesso a um PlayStation2 e jogue Shadow of the Colossus pelo menos uma vez na vida.
Só preciso mencionar que o jogo constrói laços afetivos potentes entre o jogador e dois personagens: a donzela morta e Agro, o cavalo que é o único companheiro de Wander em toda a sua longa exploração dos belos e vastos cenários da aventura. Nos dois casos, o apego afetivo brota de elementos de imersão e agência primorosos e do próprio ato de jogar. A demorada introdução do jogo mostra Agro carregando Wander e sua carga indistinguível por caminhos perigosos que cruzam cenários majestosos e descomunais. Fica claro que o herói enfrentou uma jornada longa e duríssima para chegar a esse templo, e quando ele desmonta o cavalo, posiciona a carga no altar e descobrimos tratar-se de uma garota morta, o amor do personagem por ela imprime uma marca que o jogador carregará por todos os combates contra os colossos. Conforme se percebe que essas gigantescas criaturas – que exigem altas doses de exploração para ser encontradas e de estratégia e habilidade para ser derrotadas — são pacíficas e indiferentes, e que sua agressividade é despertada apenas por nossa intervenção egoísta, a força da paixão de Wander impregna o jogador de maneira procedimental.17 Ter de matar os colossos contra a nossa vontade, um a um, faz que o sentimento do personagem pela garota morta deixe paulatinamente de ser o bode expiatório de nossos atos para tornar-se o sentimento do jogador. Para muitos, essa dinâmica suscita questões morais: tenho direito de matar essas criaturas belas e inocentes em nome do meu amor? No instante em que um pensamento como esse passa pela cabeça de quem joga, o sentimento do personagem, que é um dado do enredo, apoderou-se também do jogador.
No caso do cavalo, a relação de amizade surge exclusivamente da esfera procedimental do jogo. Ele é nosso único companheiro em toda a jornada e o único ser vivo que vemos, com a exceção de alguns pássaros e lagartos. Agro nos auxilia nas batalhas e nos segue de longe, com o olhar, quando nos afastamos dele. Relincha e fica agitado quando estamos em perigo e vem correndo até nós quando o chamamos pelo nome por meio de um comando específico do joystick. Outro comando nos permite afagar o pescoço do animal. Percorremos extensões enormes de um cenário desabitado sobre o lombo do fiel companheiro, controlando-o com comandos que replicam várias sutilezas da equitação real. A construção gradual e subterrânea desse laço afetivo entre o cavalo e o jogador será explorada dramaticamente num episódio- -chave da trama, perto do final. Eu deveria contar o que acontece, para fins de argumentação, mas não vou. A força desse momento narrativo é comparável a coisas que a maioria de nós espera encontrar apenas na literatura ou no cinema. Eu a colocaria no mesmo patamar de um episódio que ocorre lá pela página 125 do romance A travessia, de Cormac McCarthy, envolvendo o protagonista Billy e uma loba. É a evocação repentina, trágica e devastadora de um afeto que não sabíamos existir até aquele instante.
De qualquer modo, Shadow of the Colossus é uma prova contundente de como a articulação entre enredo e narrativa procedimental pode criar grande impacto emocional a partir de questões de amor e morte. Prince of Persia, lançado mais de três anos depois, deve muito de suas qualidades aos caminhos abertos por esse antecessor. A influência escancarada está nos cenários belos, vastos e desabitados; na importância da exploração imersiva e da convivência dos protagonistas no plano procedimental para estabelecer um afeto que evolui ao mesmo tempo no enredo e nos sentimentos do jogador; no emprego, com finalidade dramática, de mudanças de perspectiva e transformações súbitas das primitivas de participação ou dos métodos de controle dos avatares (por exemplo, quando Prince of Persia nos limita a carregar a enfraquecida Elika no colo durante um trecho da introdução, conforme descrito no início deste ensaio) e, por fim, no uso da morte – e do custo de revertê-la – como impulso da narrativa.\
ALGORITMO E ENREDO EM PRINCE OF PERSIA
Um ladrão desvia-se de suas preocupações egoístas e hedonistas para auxiliar uma princesa que deseja impedir a destruição de seu reino depois que o pai a ressuscitou em troca da libertação de um deus maligno. O ladrão ajuda a princesa porque, no fundo, é altruísta e compassivo, e é salvo a todo instante por ela, que o resgata de quedas e ataques mortais com seus poderes mágicos. A princesa ajuda o ladrão porque precisa dele para reabastecer sua energia vital depois de canalizar os poderes mágicos na restauração de cada terreno fértil que está corrompido. Unidos por essa mútua dependência e por um afeto crescente, o casal transpõe penhascos, torres e adversários sobrenaturais numa coreografia acrobática, transformando sombra em luz e revelando a beleza visual desse reino abandonado por seu povo.
Por um lado, a construção gradual dessa narrativa rumo ao clímax se dá no nível procedimental. O jogador conduz o ladrão e Elika por um mapa dividido em quatro áreas principais, cada uma formada por uma teia de locais/fases que devem ser restaurados até abrir-se o acesso à batalha contra um dos quatro corrompidos, personagens antagonistas que serão enfrentados no final de cada área.18 O esquema fica nítido para o jogador nas primeiras horas de partida. Você escolhe uma fase do mapa, trata de percorrê-la com acrobacias e movimentos de luta, chega ao terreno fértil e o restaura. Depois, você explora novamente a fase restaurada para coletar as esferas luminosas que revigoram Elika e avança para a fase seguinte, dentre duas ou três opções que pode escolher. Atingindo determinadas marcas de esferas coletadas, você pode retornar ao templo e conceder a Elika um dos quatro poderes mágicos especiais que dão acesso a locais outrora inatingíveis e também ao esconderijo do corrompido. As primitivas de participação reforçam o abandono desse mundo que é o espaço de jogo (não é possível interagir com ele de nenhuma forma a não ser percorrendo-o, e, à exceção dos eventuais inimigos, ele é povoado somente por borboletas; depois da introdução, você nunca verá outro ser humano em jogo, exceto o pai de Elika) e a interdependência entre os protagonistas (os saltos mais longos só podem ser executados com uma ajudinha de Elika, ela gruda nas suas costas para escalar paredões etc.). Quando todas as quatro áreas do reino foram restauradas e os quatro corrompidos, derrotados, você retorna ao templo e enfrenta Ahriman na batalha final.
Por outro lado, a construção também se dá no nível do enredo linear, exposto principalmente em sequências animadas não interativas (cutscenes) e nos diálogos que você trava com Elika. Parte dessas conversas é automática, parte é ativada quando você aciona voluntariamente o comando de diálogo, e novos blocos de diálogos são destravados após o cumprimento de determinadas etapas do jogo, de modo que há uma progressão narrativa predeterminada. Em Prince of Persia, o casamento da progressão da história com a narrativa procedimental é exemplar. Em outras palavras, o ato de jogar e a revelação gradual da história trabalham em perfeita sincronia para reforçar o que realmente importa: o desenvolvimento do ladrão e de Elika como personagens complexos e, sobretudo, o estabelecimento de um vínculo consistente entre eles. Há um momento importante, por exemplo, quando o ladrão, depois de resistir a insistentes tentativas da companheira de abordar o assunto, finalmente confessa a Elika que seus pais estão mortos e que ele não tem família nem um lar para onde retornar.
É da tensão sexual entre os dois, porém, que surge a maior parte dos diálogos reveladores. É o ladrão que dá em cima de Elika abertamente no decorrer do jogo, mas suas tiradinhas nunca parecem ser para valer. São provocações que não traem nada parecido com um desejo convicto. Elika trata de repelir com acidez as gracinhas do ladrão, mas é a princesa quem demonstra, em diversas ocasiões, estar verdadeiramente interessada em você. O ladrão fala em ter paciência para superar algum obstáculo, e ela o encara sedutoramente e diz com uma voz cheia de insinuações: “A paciência tem lá suas recompensas”. Sua resposta é: “Entrar num harém coberto de chocolate também tem”. Típico. E que tal este diálogo:
ELIKA: Quem está esperando você no mundo lá fora?
VOCÊ: Um mundo de gente.
ELIKA: Você nunca criou intimidade com ninguém?
VOCÊ: Quem confia em si mesmo não precisa disso.
ELIKA: Confiar no próprio juízo pode acabar em solidão.
VOCÊ: Se você depender dos outros, acaba sendo deixado na mão.
ELIKA: Você não me deixou na mão.
VOCÊ: Você não me conhece há tempo suficiente.
Pobre Elika, tímida e séria demais para simplesmente confessar que está gamada em você. E pobre de você, narcisista e brincalhão demais para detectar o desejo da princesa adorável e tomar uma atitude. Essa dinâmica se estende por toda a história. O ladrão com pinta de playboy vai demonstrando ser um garotão ingênuo, porém determinado e altruísta. Declara mais de uma vez que está ajudando Elika para não morrer nas garras de Ahriman, mas parece que, no fim das contas, ele só quer mesmo ajudar essa mocinha, e não é por causa do generoso decote. E Elika revela aos poucos ser mais do que a mulher nobre e resolvida que quer consertar o mal do mundo e não tem tempo para flertes bobos. Dá vontade de dar uns tapas na cara do ladrão. Olha para ela! Se parar de dizer besteira por um instante, ela é toda sua! Elika está sozinha há muito tempo. Ela acabou de voltar da morte, cacilda. E como se não bastasse:
VOCÊ: Agora é sua vez. Me conte algo sobre você.
ELIKA: Tipo o quê?
VOCÊ Sei lá… seu último namorado?
ELIKA: Nunca tive um.
VOCÊ: Nunca?
ELIKA: Nunca.
E o papo termina. Mas se você apertar o botãozinho que aciona os diálogos, se quiser insistir, o que se segue é:
VOCÊ: Se você nunca teve namorado, então…
ELIKA: Eu leio muito.
VOCÊ: Mas às vezes é melhor experimentar na prática.
A princesa que quer salvar o mundo só conhece o amor nos livros, meu caro. E está dando uma indireta atrás da outra. E no entanto, pouco depois:
VOCÊ: Bem, aqui estamos… nós dois… no escuro… (monstros gritam nas sombras)
ELIKA: Salva pelo gongo.
A tensão sexual do casal de protagonistas avança centímetros em curtos instantes de revelação e então estaciona em longos períodos de dissimulação engraçadinha até chegar numa das cenas mais importantes do jogo, em que todos os elementos narrativos – imersão, agência, subversão das expectativas procedimentais já estabelecidas – se combinam para selar um laço que vinha sendo construído em incrementos quase imperceptíveis. Vocês estão prestes a enfrentar um dos quatro corrompidos, a perversa concubina, na torre em que ela vive. Um milênio antes, a concubina era uma mulher poderosa que teve seu homem roubado por outra e acabou perdendo a beleza e o prestígio social. Depois disso, vendeu a alma a Ahriman em troca de poderes ilusionistas.19 Em todas as suas aparições, ao entrar em combate com o jogador, ela tenta seduzir o ladrão e desmoralizar Elika. Quando você chega no alto da torre, a concubina captura Elika e usa seus poderes para formar um círculo com várias cópias da princesa. Você tem que descobrir qual é a verdadeira Elika. A tarefa parece impossível. Todas são idênticas e desaparecem quando você se aproxima ou tenta atingi-las com uma espadada, reaparecendo logo que você se afasta. A concubina ri e te provoca. Você achava que gostava dela? Achava que a conhecia? Mas é incapaz de dizer qual é a verdadeira. A situação é exasperante para o jogador, até que ele se dá conta do que deve fazer. Você deve se atirar do alto da torre. Um salto para a morte. Mas Elika vinha salvando você desde o início da aventura, e agora não será diferente: ela usa seu voo mágico para resgatá-lo, e com isso rompe o encanto ilusionista da concubina. Narrativa linear e narrativa procedimental brilhantemente articuladas para contar uma história. O enredo ilumina o modo de jogar; o modo de jogar ilumina o enredo. “Seu idiota”, diz Elika. “Eu sabia que você ia me pegar”, responde o ladrão, e nesse momento ele sabe, e você sabe, que nada é maior que essa ligação entre vocês dois. Pelo menos dentro do algoritmo do jogo.
Sim, porque toda a força emocional dessa cena depende do algoritmo. A emoção só pode se instalar porque você esteve imerso em uma narrativa procedimental limitada por um conjunto definido de regras. Tendo interpretado, dominado e aplicado essas regras para perseguir o objetivo de restaurar o reino e aprisionar Ahriman, sua relação com o personagem não jogável de Elika chegou a tal ponto que você pode, primeiro, deduzir que o salto para a morte é a única maneira de fazê-la sair da armadilha; e segundo, ser emocionalmente afetado pelo que acabou de fazer e pelo resultado desse ato. Se é difícil imaginar a sensação aqui descrita e convencer-se de sua intensidade, é porque a transposição dessa experiência para o texto é impossível. Nessa cena, Prince of Persia dá um exemplo acabado de algo que só é possível num videogame. Uma emoção que só pode surgir porque você jogou.
A maioria dos gamers nem se dá conta de que a narrativa procedimental é o que realmente os absorve e fascina enquanto dedicam horas a seus jogos favoritos. Isso não quer dizer que os personagens e o enredo sejam desprezíveis – ao contrário, são essenciais para disfarçar o fato de que estamos interpretando e executando um algoritmo. O enredo entra para nos fornecer tudo o que o algoritmo não pode: uma motivação, um início e um fim coerentes, um dilema moral, uma chave para associar a narrativa procedimental a um universo fantasioso ou a um episódio específico do mundo real. Mas o que jogamos é o jogo. O que nos move, em última instância, é o prazer proporcionado pela interpretação desse conjunto específico de regras, pela descoberta das maneiras como podemos interagir com esse mundo fictício, pelo aprendizado e pela habilidade progressivos que nos permitem, dependendo do jogo, fazer nossa parte para conduzir o programa a seu estado final, à conclusão da história, à obtenção de um desempenho distinto, ao recorde de pontos, ao esgotamento das possibilidades, à exploração de todo o espaço de jogo, ao uso criativo das variáveis. É por isso que tantos enredos de jogos parecem esquemáticos e artificialmente colados ao programa, e é por isso que as transposições de filmes para jogos eletrônicos e vice-versa resultam em péssimos jogos e péssimos filmes. Para Wark: “Enquanto as outras mídias apresentam o mundo como algo a ser olhado, o mecanismo do jogo apresenta o mundo como algo que não deve ser só olhado, mas sobre o que devemos agir de determinada maneira”. O enredo serve ao algoritmo. Não é à toa que, ao consultar alguém a respeito de um novo jogo que ainda não conhecemos, a pergunta mais comum não seja “Sobre o que é o jogo?” ou “Do que trata o jogo?”, e sim “Como é o jogo?” ou “O que você tem que fazer nesse jogo?”.
Por trás de uma leveza aparente, estabelecida sobretudo nas falas enganosamente banais do ladrão, o enredo de Prince of Persia é na verdade bastante rico, contendo camadas e sutilezas que podem escapar ao jogador desinteressado. Tudo o que Elika desejava era salvar o reino. Ela não pediu para voltar à vida e quer reverter o dano que causou. No fim do jogo, depois de restaurar todos os terrenos férteis, voltamos ao templo e encontramos o rei já totalmente dominado pelas forças corruptoras de Ahriman. “Eu te perdoo”, ela diz ao pai, que sacrificou tudo para ressuscitá-la, e ele, já convertido em advogado de Ahriman, responde: “Então, deixe-nos viver. Liberte-nos. Não há o que temer.” Elika protesta: “Você se apoderou da minha vida. Arruinou todas as coisas pelas quais eu vivia!” A voz do rei se mistura à voz tenebrosa de Ahriman, e os dois seguem tentando convencer a princesa a deixá-los partir, mas Elika ataca o pai, e a luta final tem início. Controlamos o ladrão/Elika na batalha, mas vemos a ação do ponto de vista de Ahriman. Não é a primeira vez que o jogo tentará forçar o jogador a colocar-se no lugar do deus da escuridão, como se procurasse criar uma brecha para uma compaixão perversa. Em vários momentos, ouvimos a voz de Ahriman sussurrando coisas como “Não te fiz nada que você não tenha feito a mim”. É curioso notar ainda que a divindade do bem, Ormazd, parece frouxa e omissa ao figurar nos episódios da história dos Ahura que são contados por Elika ao longo do jogo. Detalhes desse tipo nos levam a suspeitar que a visão de Elika a respeito de Ahriman possa ser apenas uma entre outras. Visto como um todo, o jogo parece sugerir uma possibilidade que bate de frente com as convicções de Elika: a de que o mal é parte integrante do mundo, e tentar mantê-lo preso pode custar caro demais. Nada disso é colocado de maneira explícita, mas as pistas estão lá, e cada jogador lhes dará a importância que preferir. Para a interpretação do jogo aqui proposta, essas especulações terão um papel importante.
Finalmente, depois de um longo enfrentamento defensivo, Elika entra na bocarra de Ahriman e libera a energia azul que destrói a besta. Atordoado, você levanta e vê a pequena e luminosa Árvore da Vida. “Conseguimos! Elika, nós conseguimos!”, você exclama, exultante, enquanto vê Elika se erguendo ao lado da árvore. Mas seu sorriso se desfaz e dá lugar à inquietação. A voz de Ahriman ressoa no ambiente: “Escolha a vida…”. Outra voz, mais feminina, presumivelmente de Ormazd, sugere o oposto: “Escolha a morte…”. Não deixa de ser irônico, o deus da escuridão incitando a princesa à vida, o deus da luz condenando-a à morte. Mas ela já sabia desde o início o que ia fazer, e de certa forma o ladrão também devia ter intuído, e o jogador – e o leitor deste texto – também.
Elika transfere suas últimas gotas de energia para a Árvore da Vida, aprisiona Ahriman e morre. Você se deu conta do que ia acontecer no último centésimo de segundo antes de poder impedi-la. Agora você a ergue nos braços com delicadeza. Parece o fim, mas, inesperado, o jogo coloca você no controle de novo, só que com movimentos limitados: você só pode caminhar devagar-zinho, carregando o corpo de Elika. Vemos as costas do seu avatar, os cabelos maleáveis e os pés descalços da princesa balançando, inertes. A sequência espelha aquela do início, em que você a carrega logo após descobrir que ela tem poderes mágicos, e o mesmo sentimento de agência que antes significava o começo de uma parceria é associado agora ao término de uma relação vivida. Talvez você pense: “Essa garota estava morta o tempo todo. Ela não poderia viver com o peso de toda aquela destruição. Tão linda, boa e misteriosa.” Você sentirá falta dela. Sua morte podia estar escrita, mas o apego que surgiu entre vocês dois não estava. Você precisa carregar Elika por um corredor que parece interminável enquanto os créditos do jogo rolam na tela como os de um filme. É cruel. Mas fazer o quê? Fim.
Mas então você sai do templo, e o que chama a atenção imediatamente não é a vista do deserto rochoso, e sim o altar de pedra diante do portão. Os créditos do jogo terminaram de rolar, você perde de novo o controle e, numa sequência não interativa, o ladrão posiciona cuidadosamente o corpo de Elika no altar. Então ele tem uma visão: a conversa do rei com Ahriman, a barganha em que a vida da filha foi trocada pela liberdade do demônio. A visão termina, e nos vemos do alto, o cadáver de Elika à nossa frente no altar. A perspectiva corta para uma tomada frontal, o ladrão olhando demoradamente para o rosto de Elika, seus dedos arrumando uma mecha dos cabelos da princesa. Por fim, você bate as mãos na pedra do altar. Você tomou uma decisão.
Quer dizer, o ladrão tomou uma decisão. Ou vocês tomaram uma decisão. Vai depender muito de quem é o jogador e de como ele jogou. Nesse momento, nesse final depois do final, a grande artimanha de Prince of Persia vem à tona. Você olha para o deserto ao redor do templo e vê quatro árvores luminosas no alto de quatro pilares de pedra. A informação é muito clara. Se você cortar essas quatro árvores e depois cortar a Árvore da Vida no interior do templo, Elika será ressuscitada e Ahriman libertado, numa repetição exata dos acontecimentos que foram o estopim do jogo. Não se trata, porém, de uma decisão do jogador. É uma decisão do ladrão. Ele se apaixonou por Elika, e o jogo expressa claramente qual é a intenção dele.
Talvez essa não seja a sua intenção. Pode ser que você não esteja nem aí para Elika. Pode ser que não tenha se interessado por ela, que a personagem signifique apenas um recurso para auxiliar nos combates e salvar sua vida na execução das tarefas propostas pelo jogo. Mais provável: pode ser que você, como tantos jogadores, tenha de fato se apegado ou se apaixonado por ela, mas entenda que morrer para salvar o reino era a vontade sincera da princesa e que ressuscitá-la seria obsceno, significaria condená-la a uma nova vida de culpa e amargura e repetir um desastre que ela acaba de reverter com seu martírio.
A questão gerou reações opostas e extremas, rachando ao meio a comunidade de jogadores que comentou o final em sites, blogs e fóruns na internet. Houve quem defendesse que o programa deveria ter dado ao jogador a opção de ressuscitar ou não Elika. Mas não existe essa opção. Se você não concorda com a decisão do ladrão, com a decisão do programa, com o resultado determinado pelo algoritmo, só tem uma alternativa: ejetar o disco antes de concluir o jogo, guardá-lo na caixa e desligar o videogame. Uma pesquisa on-line rápida revelará que foi exatamente isso que muita gente fez.
Não é qualquer jogo que leva uma pessoa a desligar o console para não ser forçada a ver a história seguir um rumo com o qual não concorda. Mas, se existe alguma verdade no argumento de que o algoritmo antecede o enredo em termos de importância narrativa nos jogos eletrônicos, a explicação para reações tão exacerbadas não pode estar só no respeito aos desejos de Elika. Na verdade, o que enfureceu muitos jogadores foi o fato de que Prince of Persia nos obriga a jogar fora tudo o que fizemos até então no nível procedimental. Você passou mais de uma dezena de horas interpretando as regras do jogo, entendendo como deveria proceder para vencê-lo, aprimorando suas habilidades com os comandos e ações para propulsionar a história e restaurar os malditos terrenos férteis, como martelaram na sua cabeça que você tinha que fazer – e você conseguiu, venceu o jogo, terminou, executou o algoritmo e chegou ao resultado proposto.
E então o programa lhe diz que não, sinto muito, o mocinho se apaixonou pela mocinha, portanto ressuscite-a e desfaça tudo. Desculpa aí, nada pessoal.20
Porque no fundo, caro jogador, você jamais decide nada. Mesmo quando tem a impressão de que pode decidir, tudo foi previsto e programado por alguém envolvido no desenvolvimento do jogo, em algum momento. Prince of Persia joga na cara de quem o jogou até o fim essa verdade nada romântica: a liberdade para intervir no jogo é ilusória. Você só executa uma coisa que já foi escrita.
Entretanto, para muitos outros jogadores, a decisão do ladrão parecerá correta. Elika não parece estar morrendo por nada que valha muito a pena. Pois se você reparar bem, esse mundo abandonado, a despeito da beleza natural e da arquitetura imponente, é estéril e triste. É visível que as pessoas foram embora dele há muito tempo. E dane-se, o ladrão está apaixonado por ela, e você, de certa forma, também. Perdê-la não é uma opção. A essa altura, o pragmatismo do ladrão parece ser o antídoto perfeito para o idealismo teimoso da princesa. Ahriman que faça bom proveito dessa terra amaldiçoada. E tanto melhor que o jogo nos obrigue a tomar essa atitude, pois na vida também é assim: as escolhas foram feitas há muito tempo, nós é que demoramos para entender o que escolhemos desde o início, ou o que escolheram por nós. Você não sentiu, nos primeiros minutos de jogo, que faria qualquer coisa para salvar a vida dessa garota?
Então saca a espada, desce as escadarias do templo e corre em direção ao pilar mais próximo. Mais uma vez, há casamento perfeito de agência e enredo quando você salta de um degrau em direção ao topo do pilar onde está a árvore luminosa, pressiona, sem pensar, o botão que faz Elika arremessá-lo nos saltos mais longos e – ops, ela não está mais ali. Ela morreu. Você se esborracha no chão e sente de forma concreta a perda da companheira. O acesso a cada uma das quatro árvores externas é arquitetado cuidadosamente para que o jogador experimente na pele a ausência de Elika em ações que só poderia levar a cabo com o auxílio dela. Agora você quer mais do que nunca trazê-la de volta à vida.
Depois de cortar as quatro árvores, você entra de novo no templo e corta a Árvore da Vida. Surge uma única esfera luminosa, que você carrega em silêncio até o altar. Elika revive como se despertasse de um pesadelo. Sentada sobre a laje de pedra, arfante, com o olhar perdido, ela diz com a voz aflita: “Por quê?”. A resposta é o silêncio do olhar que os dois compartilham. Você tem a impressão de que ela entendeu. Esse tratamento mudo da cena evoca o amadurecimento dos personagens. A verborragia adolescente é calada por uma eloquente circunspecção. Este também é, como tantos jogos, um conto sobre o início da vida adulta. A escuridão já corrompe o cenário ao redor. Ela desfalece de novo, você a toma nos braços e a leva embora. Na última e arrepiante cena, o ladrão está caminhando na sua direção, com Elika no colo, enquanto o templo desmorona ao fundo e a figura monstruosa de Ahriman assoma e voa por cima deles carregando uma tempestade de areia sombria. Elika fala consigo mesma: “O que é um grão de areia no deserto? O que é um grão de areia na tempestade?” Ah, o doce fatalismo que casa tão bem com toda história de amor. Como não se deixar arrebatar por isso? E agora sim, é game over.21
Se no nível do enredo Prince of Persia é uma história de amor, no nível do algoritmo temos a história de um enredo virando o jogo. É um paradoxo que faz dele um jogo como nenhum outro: uma virada da história nega totalmente o valor da narrativa procedimental, mas só depois que o jogador cumpriu todas as etapas da narrativa procedimental é que o enredo é capaz de levar o jogo ao clímax dramático. A vitória excepcional do enredo só vem confirmar que a alma do jogo está no algoritmo.
EPÍLOGO
A demora na consolidação do potencial expressivo e artístico dos jogos eletrônicos é um fenômeno cultural mais interessante do que aparenta e menos compreendido do que se pensa. De um lado, muitos pesquisadores, políticos, jornalistas e críticos culturais apontam com desdém para os mundos ficcionais esquemáticos e infantis dos games e denunciam suas propriedades corruptoras com um alarmismo não muito diferente daquele que, no século 10, via na leitura silenciosa de livros o risco de mergulhar o leitor num perigoso estado de devaneio e prostração; do outro, os aficionados juram de joelhos que videogame é arte, mas parecem não entender muito bem por quê, ou pelo menos se mostram incapazes de argumentar a favor de sua posição com qualquer discurso que ultrapasse o conhecimento e o jargão dos já iniciados. Por algum motivo, o videogame tem enfrentado dificuldades para transcender seu estágio incunabular e se estabelecer como uma linguagem narrativa acabada e coerente.
A culpa por essa demora reside menos nos jogos eletrônicos do que em nossa própria incapacidade de compreender de que maneira sua narrativa funciona e de que modo ela nos afeta. Somos muito bons em jogar, mas péssimos em definir o que, exatamente, nos atrai nesses jogos. Primeiro, é preciso admitir – e isso será duro para muitos gamers – que não jogamos primordialmente por causa das histórias, dos personagens ou dos enredos dos jogos. Em seguida, teremos que entender um pouco melhor qual é a natureza particular dessas narrativas procedimentais, a maneira exclusiva como o meio dos jogos eletrônicos nos envolve e emociona. Por fim, poderemos entender de que forma a história ou enredo tradicional seguem sendo muito importantes, agindo como uma espécie de catalisador para que os games atinjam todo o seu potencial expressivo. Jogos como Shadow of the Colossus e Prince of Persia apontam caminhos para uma arte que alie a lógica do computador à narrativa tradicional, proporcionando experiências interativas capazes de gerar emoções profundas.
Alguns meses depois do lançamento de Prince of Persia, a Ubisoft Montreal lançou um episódio extra intitulado Epilogue. Esse pequeno jogo de cerca de três horas de duração começa nos instantes seguintes à ressurreição de Elika pelo ladrão. A dupla busca refúgio em um palácio subterrâneo e precisa escapar mais uma vez dos ataques de Ahriman, que corrompeu tudo à sua volta. O rei ressurge, ainda dominado pelo mal, mas sua função na continuidade da história permanece um tanto obscura. Elika e o ladrão precisam colaborar novamente para escapar dos calabouços com vida. Elika não está contente com a situação e não quer papo com você, mas a argumentação do ladrão a amolece, e aos poucos a relação que alcançaram no primeiro jogo vai se restabelecendo. Depois de muitos desafios, os dois escapam e chegam a uma sacada que dá para o vasto deserto. É a deixa para a conclusão romântica de tudo o que aconteceu até agora. Mas Elika tem outros planos. Ela ainda pretende impedir Ahriman, e parece preferir que cada um de vocês dois siga o próprio caminho. Você diz, aflito: “Elika, você não vai conseguir fazer isso sozinha”. Ela responde: “É por isso que devo encontrar meu povo”. E a garota que você ressuscitou por amor, contra a vontade dela, vai embora e te deixa sozinho com os sussuros do deus maligno que você mesmo libertou. Engula essa agora. Não há escolhas. Nem fim.