serrote #2, julho 2009

N de Nota, JOSÉ MIGUEL WISNIK

ALFABETO serrote


É notável, com efeito, a riqueza semântica da noção de nota. Digamos, por exemplo, que eu concentre esta nota que aqui escrevo na definição de nota musical. Tomo notas e dirijo-as à identificação da unidade de escrita que coincide com o som quando ele vibra numa frequência estável e soa aos nossos ouvidos como se estivesse espacializado no ar, num lugar: num , num , num , num si. Mas então é nota esta nota lexi­cal com que tento definir e distinguir o campo de irradia­ção da palavra; é nota a nota musical que quer fixar na pauta a instância fugaz de um som que brilha na nitidez de um instante, distinguindo-se dos outros sons; e é nota a vibra­ção ela mesma, que salta sobre o silêncio e escapa por suas propriedades internas – sua periodicidade – à indistinção em massa dos ruídos. Tal ápice sublime não esgota, no entanto, o alcance da nota. Ao apresentar este texto, con­forme encomenda, percebo em minha conta bancária um depósito em moeda corrente que, se eu quiser realizar dire­tamente no mercado das coisas, será traduzido em notas de dinheiro. Não sem que antes o controle férreo sobre a cir­culação de valores exija que eu, convertido em pessoa jurí­dica, emita uma nota fiscal.

No cômputo geral, o notário judicioso que persegue a nota se vê na contingência de produzir o efeito de uma inflação semân­tica: seria que, ao preço de tudo tentar notar, já não mais se distinguiria na noção de nota nada que seja digno de nota?

Quem quer todas as notas fica sempre sem nenhuma: toda nota é justamente um pequeno destaque, um foco pontual na massa maior das coisas, uma marca de distinção e modéstia, um nódulo da aten­ção, que mais dá a ver do que se faz ver. A nota não está acostumada a receber tanta nota, a se converter no centro das atenções. Pois ela é duplamente discreta: reservada e circunspecta por natureza, mas também portadora de uma função distintiva, indi­vidualizada, descontínua, que se manifesta em separado, sem ambições totalizantes. A nota é só. Algumas não se conformam intei­ramente com essa condição: são as notas gritantes, lancinantes, pungentes – sem falar na nota destoante. É com humildade que a nota oficial se faz a porta-voz do Estado. Algumas borram, por excesso e por cobiça, a sua distinção congênita: a nota preta. Mas foi com discrição e modéstia que a nota atravessou da burocracia romana ao capi­talismo moderno, dos copistas medievais à erudição acadêmica, oferecendo seus prés­timos inestimáveis.

A rigor, a nota é uma sobrevivente que se salvou da extinção e do distúrbio, que saiu no lucro, geralmente no anonimato, por­tando seu número de série. Mas a nota é sobretudo uma serviçal: presta-se a cha­mar a nossa atenção sobre algo que a ultra­passa, pontuando coisa a coisa, sem nunca fechar a conta. Ela é do tempo, que já vai longo, em que a massa dos objetos inu­meráveis passou a pressupor um controle exaustivo, minucioso e vão. É assim que essa pintora de rodapés vem a ser o elo perdido entre o grande e o pequeno, o abs­trato e o concreto – burocrática por fatali­dade, anacrônica por natureza, com uma resistência de formiga. A informação digi­talizada e o capital volátil varrem todos os dias o terreno em que ela medrou, sem lograr extingui-la.

Se esse império obscuro tem, no entanto, uma rainha, esta é, outra vez, a nota musical. Não foi fácil entronizá-la no pentagrama, aninhá-la na pauta regida pela clave de uma nota de referência (clave de sol, de ou de ), sob o formato de um pequeno grão de resplendor em meio à loucura. Os primei­ros esforços de notação medieval, na altura do século g, ensaiavam indicar, de maneira rudimentar e alusiva, os movimentos e as posições ascendentes ou descendentes dos sons melódicos entre as regiões graves e agudas. Mas foi na escritura musical tota­lizada, formulando-se pelos séculos 14 e 15, que o som ganhou uma nitidez autônoma, despiu-se dos seus acidentes e passou a ser vista como nota – nota contra nota, em con­traponto. O pentagrama é a gaiola de ouro que reticulou esses pontos de definição intervalados, a grade entre cujas barras a nota musical brilha enquanto dura, batendo e rebatendo em outras. Linhas suplementa­res acima e abaixo do pentagrama acolhem os voos excedentes à maneira de pequenos poleiros improvisados e provisórios, onde repousam as notas muito graves ou muito agudas, que não couberam na pauta.

A conquista da notação precisa das alturas melódicas não é ainda, no entanto, suficiente para caracterizar a nota, porque foi preciso marcar também a duração rela­tiva que constitui seu lugar no tempo. Para isso, o óvulo branco do som mais longo foi pintado de preto e ganhou hastes e aspas que distinguem as breves e semibreves das mínimas e semínimas, das colcheias e semicolcheias, das fusas e semifusas, cada uma se acelerando e durando a metade do tempo da anterior. Acrescem-se as marcas locais de suas variações de ânimo – fortes ou pianíssimas, apressadas ou retardadas, saltitantes ou ligadas. Mas o ponto-chave é que o domínio vertical e horizontal das notas escritas, sua domesticação matemá­tica no tempo e no espaço, permitiu que a música projetasse e construísse a arqui­tetura musical do Ocidente – harmônica, polifônica, discursiva, progressiva.

Se Max Weber disse, ainda que de passa­gem, que a palavra “organizar” (origem do nome das modernas organizações empresa­riais capitalistas) veio dos primeiros órgãos musicais, que dispunham os sons sob a forma de teclado, talvez se possa dizer por analogia que as cédulas bancárias que orga­nizaram exaustivamente o mundo finan­ceiro sob a forma das notas de dinheiro não seriam possíveis sem a discriminação inten­siva e sistemática pela qual se organizou o universo sonoro em notas escritas.

Quando tudo passa, fica a nota, a nota só. Leia-se aquela página pungente ao final do Doutor Fausto, de Thomas Mann, em que o colosso épico do romance vibra e se esvai numa única nota solitária – o sol agudo de um violoncelo – que agoniza e esplende em sua hora da estrela. O com­positor Arvo Pärt dá ainda veracidade musical surpreendente à sua declaração: “Descobri que me basta uma única nota bem tocada. Essa nota, ou essa pausa, um momento de silêncio, me consolam.”